Sobre Política e Religião

Em face dos atuais discursos vazios de nossos presidenciáveis, os quais ignoram qualquer senso crítico ou coerência e visam apenas agradar a grande maioria da população, penso que seria contraditório da minha parte criticar tal postura por meio de textos que visassem apenas agradar a grande maioria de vocês, amigos leitores. É por isso que apresento a seguir algumas idéias soltas; talvez bem polêmicas, mas certamente não-vazias. Haverá quem possa dizer que são apenas brincadeiras forçadas de lógica e retórica, mas haverá também quem saiba descascá-las e espremê-las de maneira que rendam um suco forte, saudável e refrescante.

1. Dizer que questões religiosas não podem entrar em pauta porque o Estado é laico é tão infundado quanto dizer que questões socialistas não podem entrar em pauta porque o Estado é capitalista. Uma coisa é não concordar com a religião ou com o socialismo; outra coisa é querer impedir que o povo e os candidatos discutam tais questões. Uma coisa é não concordar com o que uma pessoa diz; outra coisa é não defender até à morte o seu direito de dizer. Uma coisa é democracia; outra coisa é ditadura. Apenas em ditaduras não se permite falar de religião. A mesma Constituição Federal que afirma que o Estado é laico também afirma que todo cidadão tem direito, desde que respeitados os direitos alheios, à livre expressão de suas opiniões e ao livre exercício de suas crenças.

2. Em princípio, não se pode condenar quem faz campanha por meio de questões religiosas, pois o candidato que assim faz está exercendo seus direitos democráticos. Quem critica tal cidadão, alegando que o Estado é laico, critica a própria democracia. Não é porque o Estado é laico que se pode criticar a postura dos presidenciáveis; na verdade, pode-se (e é justo) criticá-los porque o Estado é democrático e, por isso, garante a todo cidadão o direito à livre expressão de suas opiniões, sejam elas favoráveis e contrárias ao estado atual das coisas. Sejam elas religiosas ou não.

3. O mesmo Estado democrático que garante aos presidenciáveis o direito de apelar para questões religiosas é, portanto, o Estado que garante ao cidadão repudiar tal postura dos candidatos, seja por meio da livre expressão de opinião, seja por meio do voto. Nesse sentido, não é descabido constatar que a apelação religiosa de Dilma e Serra tem por objetivo exclusivamente uma coisa: o voto. O problema, assim, não está nas questões religiosas em si, mas na deturpação que fazem delas, utilizando-as como trampolim ao poder. Mais do que isso, o problema está na extrema idiotice da parte de qualquer religioso que acredita nas retóricas dos presidenciáveis e de qualquer outro interesseiro. Repita-se: o problema não está em acreditar em um Deus; está em acreditar nos interesseiros que o utilizam com fins gananciosos, tanto nos púlpitos de igrejas quanto nos palanques políticos.

4. Condenar a religião por causa da lamentável postura de interesseiros é como condenar uma faca de cozinha utilizada em um assassinato a facadas; é sentenciar que a faca de cozinha deve ser presa enquanto o verdadeiro assassino fica impune. Quem defende a distância entre religião e Estado é tão prudente e maduro quanto quem deixa uma faca de cozinha fora do alcance de uma criança ou de um louco. Quem se deixa levar pelo discurso vazio dos presidenciáveis é tão inconsequente e infantil quanto um adulto que pega a faca do armário, dá para uma criança e diz: "corta o titio, corta". E quem diz que a facada é culpa da faca de cozinha é tão inconsequente e infantil quanto o louco que a dá na mão de uma criança.

5. A tática dos presidenciáveis se adapta à realidade; ou seja, os candidatos só têm apelado à religião porque há quem cai neste apelo. Isso não significa que todos os religiosos caem nela, tampouco que o problema está na religião. O problema está nos tolos influenciáveis e nos mercenários aproveitadores. Só existem mercenários aproveitadores porque existem tolos influenciáveis. Uma coisa vem antes da outra. A necessidade de leis como a "ficha limpa" é um exemplo disso, pois se não houvesse quem votasse em maus candidatos, não seria necessário proibir que se candidatassem. A existência de quaisquer leis em nosso Estado indica que algum dia se concluiu que é bom que sejam cumpridas, tal como a emergência do debate sobre questões religiosas indica que é bom que sejam debatidas. Nem impostas, nem excluídas: debatidas.

6. Por mais que o Estado seja laico, os religiosos têm todo o direito democrático de reivindicar dos políticos suas crenças, tal como os ateus, os socialistas, quaisquer outros. Mesmo quem não concorda com essas crenças colocadas em debate não pode discordar do direito de serem debatidas. O uso mercenário de questões religiosas não significa que essas questões sejam mercenárias, tampouco que mereçam nojo. Quem merece nojo são todos os mercenários - políticos ou religiosos - que usam inconsequentemente a religião, instrumento tão comum, necessário e cortante quanto uma faca de cozinha. 

7. Quem vota na Dilma porque acredita que Serra é um mal-maior não necessariamente compartilha de toda a pauta política dela; do mesmo modo que alguém religioso não necessariamente compartilha dos abusos que, infelizmente, existem em algumas igrejas. Condenar a religião e todos os religiosos por causa da triste campanha que temos assistido é não apenas sentenciar a prisão da faca de cozinha, mas sentenciar também a prisão de todos os adultos, apenas por causa de uns poucos que deram a faca na mão da criança. Prisão rima muito com ditadura.

8. Em um Estado laico e democrático, é incoerente que se condene a religião ou todos os religiosos por conta das atrocidades cometidas por alguns mercenários. Mais do que incoerente, é inaceitável que um religioso lúcido, que detém a faca da religião nas mãos, faça a loucura de entregá-la a tais cretinos. Fazer isso, repita-se, é dar a faca para uma criança e dizer: "corta o titio, corta". Pode ser que a facada corte um dedo; pode ser que a facada serre o pulso. Caso a situação já tenha chegado a tal ponto, deve-se pensar: apesar da dor, é possível viver com apenas nove dedos. E quanto ao pulso?

Comentários

  1. Puxa! Deixa eu tomar fôlego;
    Talvez seja eu uma das amigas leitoras hehe, que porventura poderiam discordar de uma coisinha aqui e outra ali e, de fato, você acertou. Mas, na real? Eu assino embaixo de 98% do que você escreveu aí, meu chapa. E até lamento algum comentário ofensivo que eu tenha soltado, sem maiores reflexões... o fato é que esse abuso da palavra "Deus" nas eleições tem me deixado louca de raiva! E eu sinto uma revolta que não é por Deus, pela religião; é pela capa na qual tudo isso se revestiu, saca? A minha revolta é pela hipocrisia que transforma esse sentimento tão bonito num produto, que a gente vende e depois joga fora...
    O religioso, sim, tem seu direito de colocar em pauta suas convicções nas eleições, assim como eu tenho o direito de colocar as minhas. Agora, o político não tem o direito de enganar alguns aqui, fazer outros acordinhos ali, só pra ficar bem na fita com todo mundo. Isso eu não tolero, e vou criticar com todas as minhas forças. E se alguns "fiéis" se aproveitam desse jogo sujo para disseminar suas mentiras e se beneficiar de uma ou outra campanha, eu critico esses fiéis também.
    Agora, à parte tudo isso... eu acredito que a política do povo e para o povo estaria fundada no amor, e eu não consigo separar a minha ideia de Deus dela...

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  2. muito bom! As imagens são muito esclarecedoras.

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  3. Ótimo texto, Vinícius!
    Muito bom mesmo!
    Embora seja triste o rumo que as coisas estão tomando, politicamente falando, nesse país...

    Tem hora que prefiro simplesmente me desligar do mundo para não ouvir tais atrocidades... Fico sem ver tv, sem ler jornal e sem ver rádio, mas daí somos chamados de alienados... Mas é difícil aguentar, não é? Quem pode culpar alguém por não querer ver tanta sujeita...

    Por outro lado, às vezes, dá vontade de sair xingando toda essa corja de bandidos; afinal, não salva um...

    Quanto mais vejo que no mundo real tudo é sujo, mas eu gosto da literatura...

    Acho ótimo que você não se cale ante o que vê de errado... (engraçado, acabei de ver no blog da Larissa uma postagem que também mostra o quão ruim está a situação... )... Isso dá esperança... Enquanto há gente expondo o que há de ruim e tentando mostrar aos outros, nem todo está perdido...

    Enfim, acho que me empolguei no comentário aqui,
    essas coisas me revoltam...
    hahahahaha,
    abraços!

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  4. Oi, Vinicius! Eu li o seu belíssimo texto e senti a necessidade de respondê-lo. No entanto será inviável eu publicá-lo neste pequeno espaço de comentários ( e, convenhamos, não é nada "democrático" que minha resposta se restrinja a um lugar tão pequeno). Assim, caso vc e os outros que lêem este recado (mesmo que não me conheçam) se interessem pelo meu humilde texto, peço que me mandem um e-mail, assim poderei encaminhá-lo na íntegra.

    mayralourenco@hotmail.com

    Abraços,
    Mayra Lourenço

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  5. Oi Vi... saudade de ler seus textos.
    Bom, eu não acompanhei toda a propaganda política, mas assisti um debate entre Serra e Dilma no youtube. Eu não gosto do plano de governo de nenhum deles. Mas não vou poder votar daqui...
    Acho que as questões religiosas devem ser levadas em conta sim, assim como todos os outros interesses que a população possa ter!
    Mas quanto às eleições, o problema não está no candidato, mas no povo que vota (que por sua vez não recebeu a educação devida do governo que elegeu)... então, temos um ciclo sem fim... difícil a ser revertido. Assim, não sei se podemos dizer que estamos exercendo a democracia, entende?
    Bom... passei, mais pra deixar um abraço e me inteirar dos seus novos escritos..
    Bjo grande pra vc e pra turma!

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