Sobre Política e Religião (resposta de Mayra Lourenço)

por Mayra Lourenço, em resposta ao texto "Sobre Política e Religião"

"Olá!

Não tenho a mesma capacidade retórica do autor deste belíssimo texto, tampouco tenho o domínio das letras como seus colegas e meu estimado futuro esposo, mas creio que poderei contribuir para o debate com minhas perdidas e alongadas reflexões históricas. Como todo historiador, comecemos por separar as frutas colocando cada qual em sua cesta, para que possamos compreender as suas especificidades; atentarmos a cada cor e sabor para que, posteriormente, possamos ajuntar tudo e fazer uma bela salada de frutas, sabendo qual a importância de cada amora ou maçã dentro dessa imensa tigela; notando qual é mais doce ou amarga e qual a composição exata de cada elemento para elaborar a receita com o gosto perfeito.

Então vamos aos morangos: creio que não podemos colocar no mesmo pote idéias tão distintas, comecemos a descascar as frutas. Socialismo, anarquismo e capitalismo são diferentes modelos de sistema político e econômico. Cada um destes pressupostos teóricos discute a forma que o Estado deve ser organizado e quais elementos e maneiras o homem deve se valer para produzir e reproduzir os artigos de que tem necessidade. Ao se autodenominar socialista, não se está proferindo apenas uma crença em justiça baseada em uma entidade abstrata, ideal e superior. Parto de pressupostos concretos, discutindo científica e racionalmente a forma como o Estado poderia estar organizado, bem como critico a forma encontrada contemporaneamente. Portanto, é absolutamente possível discutir socialismo em uma sociedade capitalista, pois trata-se de um debate relacionado a uma determinada ordem específica de organização social. Ambos tratam de matérias semelhantes: de como deve ou está estruturada determinada sociedade em suas características econômicas e políticas.

Agora às maçãs: concordo plenamente que a religião é um campo que deve ser discutido, na medida em que é parte constituinte e constituidora da sociedade ao atribuir modos de reflexão e conduta dos seres responsáveis pela construção da história. A visão de Eva e Maria influencia até hoje o modo como a mulher é vista na sociedade: de um lado a mulher que destruiu a humanidade pelo seu desejo, de outro o ideal de mulher bela, calma e submissa. Deve-se destacar, também, a importância do ideal de solidariedade e amor ao próximo que salva e salvou tantas vidas no decorrer das últimas centenas de anos. A constituição dos dogmas da igreja é dinâmica e passa por vários processos de transformação, como a criação oficial do purgatório (séc XII) e a extinção do Limbo (séc. XX) no catolicismo, exemplos da historicidade desta instituição; ou a reforma de Lutero que temeu o clamor das massas, ficando sob a asa dos príncipes alemães. Acho que me perdi nas sementes, voltemos à polpa. A religião pode e deve ser discutida em seus aspectos sociais e políticos, como definidora de normas e ações sociais, mas o caráter dogmático deve ficar circunscrito ao ambiente privado, aí sim entra a tradicional justificativa, caro leitor: o Estado é laico sim e não deve basear suas normas em princípios alicerçados na crença pessoal: o deus dos cristãos não é o deus do budista e do ateu, mesmo porque estes não acreditam em Deus.

Posto isto, encaminhemos para a seleção das framboesas. A argumentação do texto ao qual me baseio para produzir esta resposta remete sempre ao conceito de democracia, mas o que será isso? Como não posso, tampouco consigo negar minha formação, vamos à história, voltemo-nos aos gregos que foram os que primeiro cunharam o termo. O conceito tratado aqui diz respeito ao governo das demos criado por Clístenes. Nesta ordem política, a sociedade ateniense foi reorganizada em pequenas unidades e, a partir destas, havia as seleções para participar das instituições públicas. Com este novo regime, a participação nas esferas estatais era permitida a todos os cidadãos; o problema é que este grupo correspondia a apenas 10% da população, na medida em que as mulheres, os escravos e os metecos eram impedidos de participar. A democracia, na sua origem, portanto, não quer dizer governo e voz para todos. Vamos cortar logo esta fruta se não perderei toda a salada: correrei com os acontecimentos. Como se sabe, o período clássico foi substituído pelo helenístico, os gregos dominados pelos Romanos, estes derrubados pelos germânicos que, por sua vez, contribuíram para formar o sistema político, econômico e social chamado de feudalismo, durante a Idade Média e, finalmente, com a desagregação do sistema feudal, surgem as monarquias nacionais e o Antigo Regime. Perdi o fôlego e quase faço um suco. Cheguemos ao ponto: o marco definidor da contemporaneidade e responsável pela derrubada do sistema vigente no século XVIII foi, como é do conhecimento de todos, a Revolução Francesa. Este processo foi alimentado pelos ideais iluministas, que por sua vez reelaboram a idéia de democracia. Neste grupo de intelectuais que se diziam dotados da luz para combater a escuridão do misticismo gestou-se a concepção da participação popular, da educação pública e gratuita e da exaltação da racionalidade humana como ponto fundamental da essência humana E divina. Neste mesmo processo foi produzida, além das citadas, outra idéia presente em nossa carta constitucional: a concepção do Estado Laico, no qual as normas de um determinado corpo político devem ser baseadas no que a razão humana pode abarcar, relegando a crença a esfera particular.

Como já estou me alongando demais, terminemos logo a framboesa para seguimos às amoras. Dentro das concepções iluministas proclamadas e instituídas pela ação revolucionária e contra-revolucionária encontramos diferentes concepções de Estado, como a de Voltaire, que defendia uma monarquia constitucional (e disse que defenderia até a morte o direito de falar, mesmo que não concordasse, mas provavelmente um sans cullotes não o teve como advogado) e como a de Rousseau, que proclamava a soberania popular e o fim da propriedade privada. Mas porque esta última idéia não vingou? Ora, a Revolução Francesa significou o triunfo do ideal burguês, é o capitalismo no topo da montanha-russa (russa?). Pois é, caríssimos: individualismo, exploração do trabalho e ditadura da maioria: eis as partes constituintes do que apaixonadamente chamamos de democracia. É, simplesmente, um regime que pretende a igualdade tratando da mesma forma o que a priori é diferente; em outras palavras, faz parte do sistema democrático que uma idéia se sobreponha a outra, afinal, democracia é a ditadura da maioria, ou melhor, da minoria que fica com o que é da maioria. Proclama-se a democracia como se fosse sinônimo de igualdade; se assim o for vivemos em qualquer outro regime, e não o democrático.

Não estou defendendo a instauração de um estado ditatorial ou acho que as opiniões divergentes devem se calar. Relaxem; não sou stalinista, mas critico a democracia. O que quero dizer é que o Estado laico é pressuposto da democracia, da ordem política gestada durante a R. F. e incorporada a nossa carta constitucional. Liberdade de associação e idéias? Sim. Pode-se organizar igrejas, quantas e da forma que quiserem! Fale e discuta o que puder. A lei permite que a religião deva ser debatida: todo cidadão tem o direito de se manifestar e proferir suas crenças!

Entretanto, o Estado está alicerçado na ordem racional e não na crença. Portanto, o que é considerado particular não pode se valer para o geral, a crença em Deus é individual, não pode ser considerada um princípio social comum.

Ora, basear uma ordem institucional estatal na justificativa de que Deus não quer ou não prega que se faça o aborto é o mesmo que procurar controlar o desmatamento com a justificativa de que os duendes e gnomos estão sendo massacrados. O foco aqui não é decidir entre a verdade e a falácia destas duas proposições ou dos pressupostos religiosos, mas trata-se de evidenciar que as bases de edificação da ordem administrativa se dão a partir daquilo que se pode comprovar, já que foi constituída a partir da filosofia grega retomada pelos iluministas, do caráter investigativo: abortar pode ser proibido se se atentar contra a vida, já que esta é uma garantia suprema da constituição, ou a devastação deve ser evitada pois implica na perda vegetal e processo de aquecimento do planeta, prejudicando os biomas terrestres.

Agora às cerejas! Partindo deste pressuposto, poderíamos pensar que o Estado deveria ser a representação dos anseios e expectativas dos seus habitantes, na medida em que é parte e objeto de determinado meio social. Se a maioria dos brasileiros é cristã, por que não adotar o princípio religioso como definidor das ações governamentais? Entretanto, no Irã se fala de religião no Estado e trata-se de uma ditadura. No regime autocrático brasileiro a Igreja Católica foi a primeira a querer chutar o Jango. E dizem que é na ditadura que a religião não tem vez?

Poderíamos até fazer como no Oriente Médio: juntar política e religião e elaborar um estado teocrático, mas para isso teria de se rasgar a lei máxima: só fazendo uma revolução! “Aux armes citoyens! Formez vos bataillons!”

Hora de misturar:

Chegou a hora de misturar as frutas e fazer, finalmente, a salada. Falar de socialismo não é o mesmo que falar de Deus ou de crenças religiosas, pois se trata de matérias diversas. Discutir socialismo no capitalismo significa debater no campo político e social, elaborando uma reflexão sobre a mesma matéria. O regime democrático não pressupõe igualdade tampouco se fundamenta na ordem de tudo fazer e poder; assim pode-se discutir religião, mas esta deve resguardar-se ao campo da opinião e da crença, sendo impossibilitada sua utilização para pensar as normas e pressupostos estatais. A idéia de estado laico, portanto, gestada junto com a idéia de democracia, corresponde a ascensão da racionalidade e da ciência como fundamento das instituições políticas. Pensar outro estado é possível? Sim. Na verdade acredito que a crítica não deve se voltar a religião, tampouco é culpa de duas ou mais pessoas que participam do jogo político e fazem tudo para vencer. O problema ao qual estamos expostos é a própria estrutura democrática que permite que uma disputa política esvazie a complexidade social, escondendo os problemas sociais de classe e trazendo para o centro do debate uma questão particular que deve ser respeitada e, repito, mantida no âmbito privado.

A democracia não nos representa, não atende aos anseios e necessidades do grupo social que a compõe. Ora, para que serve o Estado? Para atender a sua população? Qual grupo social? Tal qual está organizado, representa os interesses dos grandes capitalistas e senhores de terras. A minoria mandando na maioria. Mudar? Não sei! Pensar? Talvez. Já diria o escritor, só há prática revolucionária com consciência revolucionária.

No final, excluindo as maçãs, produzimos uma bela salada de frutas vermelhas!

Ops! Cadê a faca? Alguém pegou?"

Mayra Lourenço é historiadora, pretensa marxista, educadora, filha da Elayr, esposa do Acácio, dona do falecido Strike e amiga de um monte de “uspianos” que fazem letras.

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