Por Amor

Talvez ambas, cigarra e formiga, nunca se toquem do quanto se amam.

Se soubessem, talvez a cigarra tentasse acordar todo dia na mesma madrugada, em plena escuridão do amanhecer, para ir lá, bocejante e desengonçada, tentar acompanhar a incessante marcha operária da outra em busca de folhas sem fim. Cumpriria o papel ridículo de saltitar em meio aos passos firmes e ligeiros de miúdas patinhas incansáveis, terminando a jornada entalada, em plena entrada do formigueiro, empacando o caminho das demais sem trazer uma mísera folhinha. Tudo por amor.

Sem contar que talvez a formiga abandonasse o trabalho da vida toda para ficar ensaiando músicas ao longo do dia, desafinando agudos incorrigíveis nas suas rimas pobres de amor e dor. Cumpriria o papel ridículo de questionar ao sol e à lua como, de repente, a outra deixou de procurá-la nos invernos esfomeantes, e terminaria expulsa do formigueiro e desamparada no frio da solidão. Tudo por amor.

Cada uma, pouco a pouco, deixaria de ser quem era: deixaria de ser amada. Simplesmente por tentar agradar. Simplesmente por pensar que amar é tornar-se a pessoa amada.

Ainda bem que, ao que tudo indica, nunca se tocarão do quanto se amam. Só assim, no mero ser quem são, poderão perpetuar esse amor tão singelo.

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